Matéria de O Globo de 30 de agosto trouxe estatísticas aterradoras sobre suicídio entre adolescentes e jovens no Brasil.
O mote para falar no assunto era a história tristíssima do rapaz de 14 anos, que tirou a própria vida, após ser vítima de bullying em uma escola particular, onde era bolsista. O assédio foi ignorado pela escola, a família não se deu conta da gravidade e o menino não aguentou a pressão.
"A tendência do suicídio no Brasil vai na contramão dos números globais - enquanto, de 2000 a 2019, o número caiu 36% no mundo, no país ele subiu 43%." Diz o artigo do jornal.
Por quê? Se eu disser que tenho a resposta, estarei mentindo. Vários fatores contribuem para esta situação assustadora e ao mesmo tempo oculta. Ninguém quer falar sobre o tema, os casos são muitas vezes omitidos, o tabu silencia o debate.
Mas precisamos abordar o assunto, se quisermos entender e transformar essa vertente do sofrimento humano, cada vez mais frequente. A maior parte da minha clientela sempre foi composta por adolescentes e jovens. Acompanhei vários casos onde o risco de suicídio aparecia, seja de forma velada, seja explícita. Mas, meu primeiro contato com o que talvez seja a dor emocional mais avassaladora, foi pessoal.
Era um dia 17 de maio, uma manhã suave, de brisa fresca. Eu cursava uma pós graduação e, ao sair da aula, vi que haviam várias chamadas perdidas de uma amiga, que fazia aniversário naquela data. Liguei de volta, crente que receberia algum convite para os festejos. Mas, não. A notícia era devastadora e me lembro desse momento, em câmera lenta, como se fosse agora - embora tenha ocorrido há mais de dez anos. Uma amiga em comum, linda, inteligentíssima, excelente profissional, carismática, amorosa, havia partido por decisão própria, com cerca de 40 anos, deixando dois filhos, um deles bebê.
Como ela tinha se mudado para outro estado, havia seis meses que não nos víamos. Em nosso último encontro, com um grupo de amigas, tomamos um café especialmente agradável. Ela, com o bebê no carrinho, muito alegre, parecia feliz. Até hoje essas duas cenas não se encaixam na minha memória de jeito nenhum. Como aquela mulher solar, que todas admirávamos, havia chegado naquele estágio de desespero sem volta? A partir desse dia, fui estudar e me aprofundar nos abismos da alma que levam a esse desfecho.
A primeira informação fundamental é que a pessoa que tira a própria vida não "deseja morrer". O ato em si quase sempre é o último recurso para lidar com um sofrimento literalmente insuportável. Essa alma humana está em busca de paz, de silêncio e sossego, de pausa nas emoções incontroláveis que lhe torturam corpo e mente.
Alguns pedem ajuda ou socorro, antes do desespero final. E não são escutados ou levados a sério, como o menino da escola paulista. Outros, desalentados, escondem sua dor por não acreditarem mais que possam ser apoiados. E decidem, em silêncio, encerrar o martírio interior de forma definitiva e inapelável.
Aos familiares e amigos, resta o vazio, a culpa, a incompreensão, os questionamentos, auto-cobranças, a revolta, a perplexidade. Que os acompanhará para sempre, como uma marca indelével da tragédia que vivenciaram.
As questões ligadas à saúde mental pouco a pouco ganham o imaginário coletivo, a mídia, a vida de pessoas comuns e celebridades. Felizmente tornou-se mais comum e aceitável expôr seus limites psíquicos, como fez a ginasta Simone Biles, nas olimpíadas de Tóquio.
Mas o ranço conservador e preconceituoso permanece. Acredito que a maioria dos brasileiros ainda pensa que a dor emocional deve ser suportada, escondida, omitida. Quando, na verdade, falar sobre ela em um ambiente terapêutico é o melhor caminho para a saúde e a cura.
Sou defensora ferrenha da psicoterapia para todos. Quem busca ajuda psicológica precisa de alívio para suas dores, dúvidas e questionamentos. Eu costumo dizer que os adultos deviam fazer uns bons 10 anos de terapia, antes de decidir ter filhos. E os filhos, se apresentarem sinais de desencaixe social ou pessoal, também podem se beneficiar demais dessa ajuda.
Eu pratico o que prego há mais de 40 anos. Meus filhos foram atendidos desde pequenos, quando precisaram. Meu marido seguiu meu exemplo, há mais de 30 anos.
Não é vergonhoso, não é ser fracassado, não é motivo para humilhação. Tratar da saúde mental é sinal de lucidez, de autocuidado, de amor-próprio e sensatez.
Encontramos milhares de dicas sobre "skincare" nas redes sociais, mas muito pouco informação correta sobre bem-estar psíquico. Como se a aparência da pele, nosso precioso invólucro, fosse mais importante do que a saúde da mente.
Voltando à pergunta do início do texto, de por que o Brasil vai na contramão das estatísticas sobre índices de suicídio, trago algumas reflexões - e nenhuma resposta definitiva. Acredito que a onda conservadora e preconceituosa que varre nosso país torna cada vez mais difícil a aceitação das diferenças. O menino, que mencionei no início do texto, era negro, gay, periférico e bolsista em uma escola de elite. E sofria ataques de colegas justamente por estas características. Hoje é comum os colégios caros abrirem espaço para alunos de baixa renda, como forma de compensar a extrema desigualdade social que enfrentamos. Seria uma atitude louvável se estudantes, funcionários, professores e coordenação fossem devidamente treinados e orientados a lidar com essa alteridade. Não são, nas escolas que conheço de perto. Na prática, o racismo - que é estrutural e precisa ser combatido - é escamoteado por discursos paternalistas. Da mesma forma, a homofobia, o elitismo e muitas formas de opressão passam ao largo, como se fossem problemas invisíveis.
E o adolescente ou jovem adulto que é alvo de discriminação acaba lidando sozinho com a violência, murchando sua alegria e vitalidade, mergulhando numa espiral de dor e sofrimento que pode culminar no suicídio. O rosto dessa tragédia é negro, homem, jovem e pobre.Como é o perfil das vítimas de tantas outras desgraças que poderiam ser combatidas neste Brasil ainda tão desigual e excludente.
Eu adoraria terminar este texto com algum fio de esperança. Mas não será possível.
Apenas sugiro a todas e todos que enfrentam algum sofrimento psíquico, que procurem ajuda profissional. Na maioria das cidades de médio e grande porte há serviços de psicoterapia gratuitos ou por valores acessíveis. E, em casos extremos, você pode recorrer ao CVV (Centro de Valorização da Vida) ligando para o 188. O atendimento é gratuito e funciona 24 horas, o ano todo.
Adriana Moretta para a coluna Ciranda da Terapeuta