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A Redenção do Rio

A Moça chora pela perda do filho pródigo, e com as mãos ensanguentadas, segura a bala que perfurou o peito preto do menino que sonhava ser jogador de futebol… essa mesma bala também resvalou no cabelo loiro do policial que tentava ajudar, mas que fora impedido pelo chefe do seu batalhão, que era amigo dos caras que vendem armas em cima do morro que leva ao céu mais rápido que o Bondinho do Rio de Janeiro.

Esse mesmo morro abrigava o filho de uma doméstica conhecida da família, a Dona Rosa, que deixou crescer mais espinhos que flores em seu jardim de desilusões… era o seu filho que entregava o pó branco que circulava nas festas do menino Joca, aquele que veio de família rica e que fez faculdade pública, mas que acabou experimentando a erva daninha nas aulas em que cultuava o socialismo puro, quase tão puro quanto o pó que consumiu cada batida do seu frágil coração.

Dona Rosa hoje consola a moça que chora pela perda do filho e, mesmo sem saber seu nome, se sente próxima pelo sofrimento que a pobre exala pelos poros da sua pele cor de ébano… Dona Rosa pensa em chamar a mulher para se acostar na sua sala, mas sabe que seu marido pode estar em casa, cheio de cachaça e com desejo de bater em mulher desarmada. A moça, então, se levanta e diz que vai encontrar seu outro pretinho na linha do trem para Vigário Geral; ela está cansada de sofrer pelo que não tem remédio pra curar.

A Moça vai andando pedir esmola na mesma esquina em que alguns travestis se acotovelam para tentar a sorte de terem o que comer neste enorme teatro chamado Lapa. Sandra, a prostituta trans mais famosa da área, percebe a agonia da moça preta que acabara de perder seu valioso rebento e resolve ajudar. Carrega a coitada para o novo lar que Tião lhe presenteou: um apartamento novinho, em um condomínio fechado ma Barra da Tijuca. Foi a troca que Tião fez para calar a amante de tantos anos, aquela por quem ele tem amor e vergonha, em um misto de destino e preconceito; para que Sandra não contasse aos moços do comando da Comunidade que Tião é fruta e é doce, quando não está com o fuzil nas mãos…

Chegando na comunidade, depois de algumas horas de viagem, a moça recebe um copo de água e um pedaço de cobertor velho para se acostar em um canto cheio de sujeira e restos de obra do apartamento mal-acabado no final da rua ilegal em zona de Mata Atlântica devastada.

As águas começam a chorar dos céus, atendendo ao pedido de Redenção da comunidade do Rio de Janeiro, que já não aguenta mais tanto tiro, tanta doença e tanta desgraceira. As águas limpam o cheiro de morte cotidiano impregnado nas esquinas de cada rua da Cidade Maravilhosa e levam alguns para o céu, para se juntarem a tantos outros, vítimas de todo mal que assola do Paraíso no Inferno de Janeiro…

E, sem pestanejar, a Moça pede para o seu Cristo a sua própria redenção; pede para se unir aos escombros da sua própria existência, em meio ao caos desta Cidade tão linda que um dia chamou de casa. Ele atende seu pedido e, dias depois, leva junto com seu corpo o barraco elegante que fora construído ilegalmente em um terreno que não era de Tião nem de ninguém que ali morava.

A Moça se levanta e corre em direção ao seu pretinho que havia morrido dias antes. Se encontra com Joca e o filho da Dona Rosa também. Conhece os amigos da Sandra que foram mortos por serem travestis, os amigos do policial de cabelo loiro que havia tentado ajudar, porque esse sim era bom de coração, e conhece o filho do homem que liderava a comunidade em que todos viviam morrendo de medo. O pequeno menino se chamava Lucas e havia morrido de uma febre forte em um dia em que os moços que vestiam branco não tiveram condições de olhar para ele… morreu ali, vítima do mesmo veneno que haviam morrido todos os outros presentes nesta sala celestial.

Morreram todos de indiferença.

Fui! (…)

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