Em minha Coluna inaugural, aqui na revista, considerei iniciar, trazendo algumas das questões mais sinuosas e que mais afetam os Direitos das Mulheres, sob a minha visão.
Como uma mulher muito conectada aos meus desejos, estudo e interpreto o Direito sob as lentes das questões de gênero e das teorias do Movimento feminista, por isso não consigo descolar o faro de temas como a sexualidade feminina, o desejo, o erótico, porque os considero como a matriz das nossas questões mais profundas e que afetam, por isso mesmo, a construção da nossa identidade. Não à toa, Rose Muraro, nos advertia em relação ao controle da nossa sexualidade e a reclusão ao domínio privado, como sendo os dois pilares da opressão das mulheres. Por isso mesmo, nossa reinserção na história encontra-se no resgate do prazer, na solidariedade, na não-competição. Não seremos queimadas vivas, enquanto estivermos dispostas a iluminar o mundo masculino e patriarcal com nossos valores.
Trago comigo, enquanto mulher, o fato de que estarmos conectadas aos nossos desejos, nossos sonhos, torna-se imprescindível na constituição da nossa identidade. Mas tenho clareza que esse anseio, fatalmente, nos conduz a severos impasses: Como construir nossa identidade, tão importante para nós, sobretudo para a afirmação dos nossos direitos, em meio a uma sociedade tão marcada por masculinidades tóxicas ou até mesmo patológicas?
Como assumir aquilo que somos e nossos desejos mais profundos, dentro de um cenário e estado de coisas, cada vez mais patriarcal? Como ter prazer sexual genuíno em nossos corpos, em uma sociedade tão anti-erótica, que ainda confunde pornografia com erotismo, deixando inúmeras mulheres, quando não violentadas; insatisfeitas sexualmente?
Como nos enxergar mais livres, nos espaços que lutamos tanto para ocupar, se quase sempre nos vemos diante da violência patriarcal, praticada, inclusive por outras mulheres?
Essas são as perguntas que me movem, dentro do campo de experiências que acabei atraindo ao longo de todo meu processo existencial, enquanto mulher. Depois de ouvir e observar muitas mulheres, seus dilemas e suas questões, fica impossível não ter a noção de que, desde muito novas, sofremos muita violência, até conseguirmos as condições necessárias para elaborar todo esse sofrimento, para a partir daí construir a nossa identidade, fazendo escolhas, e sobrevivendo, apesar disso.
Quantos ritos de passagem nos fizeram continuar a amar para sobreviver? Em quantas armadilhas caímos, de quais nos livráramos?
Quantas alianças malsucedidas; quantas vitoriosas? Quantas peças de peões derrubados, ao longo do jogo, que é a nossa vida? será que ainda somos capazes de conseguir honrar essas peças, sem nos render à dor da perda? Quantas de nós, enquanto sobreviventes, na diversidade, seríamos capazes de inventariar a própria vida, nossas dores e nossos sintomas?
Quem já se ergueu no tabuleiro da sobrevivência, sabe que ele é pleno de significados.
“basta uma crise política, econômica ou religiosa, para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes”
Na condição de advogada, colunista e ser pensante, que se debruça no cotidiano das questões de gênero, eu me faço todos os dias a mesma pergunta: Qual o meu papel na afirmação dos Direitos das Mulheres? E faço isso de propósito, porque sou mulher e tenho clareza do estado de coisas que nos assola: Cultura do estupro, Violência doméstica, Feminicídios, Violências sexuais, assédios sexuais, importunações sexuais etc. Uma série de violências, praticadas em razão do gênero.
Lutamos e ganhamos a condição de Sujeitos de Direito, mas será que deixamos de ser cidadãs de segunda classe, nas democracias modernas? Será que podemos sonhar em sermos livres, quando Direitos básicos como o aborto legal, ainda são negados a uma criança, vítima de estupro, arrastando uma gravidez torturante, com apenas 11 anos, diante de algozes que deveriam protegê-la. Nesse ponto, me refiro tanto à juíza como ao Estado omisso, com sua rede de saúde e apoio, sempre precária, quando o assunto são nossos Direitos reprodutivos.
E já que os ventos do Norte não movem moinhos mesmo, temos que suportar, ainda, o retrocesso vindo das bandas da Suprema Corte, nos EUA, suspendendo o direito ao aborto, uma garantia concedida às mulheres, há 49 anos, algo que trará muitos impactos na afirmação dos nossos direitos, sobretudo em relação àquelas mais pobres.
Diante disso, como vamos fazer para seguir adiante, na busca pela superação desse estado de coisas? Afinal, quando vamos ter o que comemorar, de fato, em termos da construção de nossos Direitos tão negados? Como superar a Violência de gênero?
Pelo visto, ainda teremos de negociar muito para sobreviver em meio a tantas obliquidades e falta de retidão do sistema patriarcal e seu viés conservador, que cria germes o tempo inteiro para que a engrenagem democrática não funcione, fazendo com que nossos Direitos continuem em suspenso. Vale sempre recordar o alerta de Beauvoir, de que “basta uma crise política, econômica ou religiosa, para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes”. Estejamos vigilantes!
Katarina Brazil para a coluna direitos das mulheres
Encontre-a no Instagram: @katarinabrasil