"Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite. Que ninguém se engane, só se consegue a simplicidade através de muito trabalho”, disse Clarice Lispector.
A natureza nos proporciona sem esforço um espetáculo diário, sem pedir explicações nem fazer cobranças de qualquer tipo. O nascer e desabrochar de uma rosa é um espetáculo fascinante. Linda, delicada, de perfume peculiar, com pétalas macias e seus espinhos axiais, cantada em verso, prosa e poesia. Cartola diz, na letra de uma de suas músicas: “As rosas não falam”. Porém, se falassem, perguntariam a elas: “Rosa, você gosta de menino ou de menina?” E, para surpresa geral, a rosa é bissexual. A danada pega os dois. A exemplo de rosas, hibiscos, lírios: são flores e são chamadas de flores completas. Não são nem machos, nem fêmeas; são simplesmente flores.
No reino animal, temos os leões africanos, símbolos de liderança, beleza, força, principalmente em sociedade patriarcais que envolvem haréns de fêmeas. Porém, entretanto, certa porcentagem de leões africanos machos abandona suas fêmeas para formar seus próprios grupos homossexuais. E viva la diferença. Já ouviu falar de algum africano que foi lá tirar satisfação com o rei da selva? Os golfinhos são considerados extremamente inteligentes em capacidades cognitivas e sociais, comparados aos chipanzés e aos humanos. Um par de golfinhos nariz-de-garrafa machos manteve um relacionamento por dezessete anos. Pesquisadores identificaram um bando inteiro de golfinhos composto apenas de machos.
Eles são tão inteligentes que desprezam qualquer manifestação de preconceito. Olha o nível de inteligência dos golfinhos! O bonobo (uma espécie de macaco muito parecido com o chipanzé), os carneiros, os pinguins… Todos esses preferem muitas vezes viver e acoplar com os semelhantes do mesmo sexo. Alguns chegam a passar toda a vida juntos, criam filhotes, brigam — na realidade, casam-se. E nunca ao menos ouvimos dizer que houve no congresso dos animais um parlamentar exaltado em discurso feroz contra o comportamento “estranho” dos de sua espécie. E o que dizer de um casal de pinguins machos, que andavam de mãos dadas em um zoológico na fria Alemanha? Dotty e Zee, juntos há mais de dez anos (inclusive, criaram um filhote desde o ovo) e nem por isso o filhote ou um dos pinguins foi excomungado por quem quer que fosse, ou exorcizado em praça publica por alguém cheio de razão e com uma gana de trazer os bichos à razão. As libélulas estão entre os predadores mais evoluídos do mundo dos insetos e, surpreendentemente, têm uma frequência muita acentuada de encontros entre as do mesmo sexo. A ideia de que uma relação entre pessoas do mesmo sexo não seria “natural” é tão cheia de complexidade como a de tentar definir o que é de fato algo “natural”?
"sou um ser humano com uma cabeça pensante, um coração latejante e pernas incansáveis — e lindas, diga-se de passagem. "
Quando euzinha era muito novinha, pequenininha, adorava o desenho animado do Dumbo. Sabe aquele elefantinho? Ele era eu. Diferente. O pobre do elefantinho foi expulso, excluído. E depois, com a ajuda de um “rato”, olha a ironia, descobriu que podia voar. Olha a magia. Nos desenhos com sereias, eu enlouquecia. Achava-as lindas, queria ser igualzinha a elas: lindas, com dorso de mulher, sem nada além de uma calda maravilhosa da cintura para baixo — além de respirar embaixo d’água e de nadar como ninguém. Finalmente a Disney nos deu Ariel, essa pequena sereia que passeava em meus sonhos de realização pessoal. Eu morria de vontade de que aquele mundo dela fosse o meu: apaixonada por uma cara bonito, lindo de morrer. E aparentemente, graças a Deus, aparentemente, o amor era impossível. Ao contrario da Ariel, tenho o dom da fala e o poder da comunicação. Não sou sereia, nem leão africano, nem pinguim, nem bonobo: sou um ser humano com uma cabeça pensante, um coração latejante e pernas incansáveis — e lindas, diga-se de passagem. Teimosa a ponto de insistir que darei certo. Como Cora, fiz a escalada da montanha da vida removendo pedras e plantando flores.
Há algum tempo, já faz um tempo, em uma de minhas idas e vindas de metrô abarrotado de gente aqui da Zona Leste de São Paulo, percebi à minha frente um cavalheiro, alheio ao mundo, completamente absorvido, concentrado em sua leitura. Tentando ser discreta, função nada fácil para mim, consegui ler uma frase e escrevi uma mensagem para mim mesma no celular com o nome do autor. O livro era de um senhor chamado Lúcio Aneu Séneca. Alguns dias depois, chegando em casa, fui pesquisar o livro e seu autor. Encontrei o livro e a frase que com perfeição descreveu a mim mesma: “Uma mulher bonita não é aquela de quem se elogiam as pernas ou os braços, mas aquela cuja inteira aparência é de tal beleza que não deixa possibilidades para admirar as partes isoladas”.
Muito obrigada a esse senhor desconhecido do metrô da Zona Leste de São Paulo e, principalmente, a Séneca, um dos intelectuais que viveu no Império Romano e inspirou o desenvolvimento da tragédia na dramaturgia europeia renascentista.
Como podem perceber, não sou romana, não sou europeia, nem renascentista. Agora, que lá tenho certo jeito com a dramaturgia… Ah, isso eu tenho.
Jogê Pinheiro para a coluna Espartilho Trans
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