Hoje eu acordei pensando nela, na mulher que tanto amei e que ainda amo. Penso em todos os momentos ótimos que compartilhamos e tento fugir do final trágico que levou embora as risadas cotidianas da nossa família; ela era a alegria constante em todos os eventos, uma pessoa sempre disposta a entreter e a fazer com que nossa caminhada fosse a mais leve possível, muito embora ela mesma estivesse sobrecarregada…
Ela era luz pura para todos nós, mas dentro dela havia uma escuridão sem fim que tomava o espaço sagrado da sua fé e a fazia acreditar, cada vez mais, que precisava fugir desta vida para encontrar sua tão sonhada paz. Nunca acreditamos que essa fortaleza um dia se dobraria, mas foi o que aconteceu: em um dia qualquer de uma terça-feira soubemos que ela havia, finalmente, conseguido fugir da vida dela. E tudo ficou tão cinza deste a sua partida, tudo ficou tão calado, tão frágil.
Superamos a cada dia a sua ausência e tentamos nos refazer do desastre que é ter uma pessoa próxima que resolve fugir para sempre. Sabemos que ela não tomou essa decisão para nos magoar, pelo menos não totalmente, mas foi a forma que ela encontrou para aliviar a dor imensa que já não suportava mais carregar.
Dizem que os que fogem da vida são covardes, mas eu penso diferente. De certo não são corajosos por tomarem uma decisão baseada no desespero, na tristeza profunda, em um momento em que todas as portas parecem estar fechadas, mas tampouco são covardes. Minha tia não era covarde! Jamais foi! Ela era uma mulher corajosa, audaciosa, destemida e com uma forma única de enxergar o mundo. Ela foi a primeira mulher da nossa família a se assumir lésbica, em um momento em que todas se escondiam atrás de casamentos falidos. Ela pilotava uma moto como ninguém e foi responsável por uma enormidade de projetos, desde obras de embelezamento para a cidade até roteiros de cinema. Sim, ela foi uma mulher fantástica, apesar de toda a amargura que lhe conferiu a perda do apetite pela vida, no final do seu trajeto…
Espero que hoje que ela esteja bem, que sua alma possa aproveitar cada segundo de todos os momentos infinitos que desfrutamos neste plano, que com certeza se tornaram eternos com suas piadas oportunas e risadas em alto e bom som.
Por muito tempo tive raiva dela; raiva por nos deixar assim desta forma estúpida, como um soco no estômago que não esperamos receber e que parece doer sempre que o tempo vira e um vento gelado sopra. Agora entendo que não se trata de nós, que nunca foi sobre o que nós sentiríamos depois da sua fuga. Sempre foi sobre ela e sua saída inesperada e voluntária da sua própria vida.
Hoje não gostaria de falar em suicídio, em tristeza, em morte. Gostaria de falar sobre a vida, a nossa vida, que é cercada de bons e maus momentos. Gostaria de falar sobre a superação das nossas dores e sobre o entendimento para os que não conseguiram superar a si próprios.
E por fim, gostaria de falar sobre o perdão. Não o nosso perdão, mas o perdão dos próprios fugitivos de suas vidas, para que consigam se perdoar por desistirem em alguma etapa do percurso…
Fui! (Agradecer todos os infinitos momentos ao lado dela e continuar firme em minha caminhada, pois eu não vou fugir para lugar nenhum.)
* Dia Mundial da Prevenção ao Suicídio