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A gordofobia médica



Quando menstruei pela primeira vez, aos doze anos, senti uma das piores dores da minha vida. Algo dentro de mim parecia se contorcer a ponto de não me deixar pensar mais em nada. Era a primeira vez que eu estava sentindo cólicas menstruais, os adultos me disseram, então eu torci para que as coisas melhorassem nos próximos meses, o que não aconteceu.


As dores eram incapacitantes e depois de alguns meses, minha mãe e eu começamos nossa busca por médicos que pudessem me ajudar. Eu relatava as dores intensas, como a minha vida precisava parar completamente uma vez por mês, falava do fluxo intenso que vazava pelos absorventes não importava quantos eu colocasse. Dois absorventes noturnos combinados a duas calcinhas não eram o suficiente para evitar vazamentos ou conter o fluxo.


Em contrapartida, minhas amigas lidavam com a menstruação de forma muito mais amena. Nenhuma delas parecia gostar, mas suas vidas seguiam e em alguns dias tudo voltava ao normal. Algumas até mesmo praticavam educação física, quando eu mal conseguia andar. Aquilo não podia ser normal. Menstruar não deveria ser tão horrível para mim. Eu sabia que havia algo de errado e fui em dezenas de médicos na esperança de que pelo menos um pudesse me ajudar.


Bebi uns chás, tomei algumas medicações, usei bolsas de água quente, até superstição eu fiz (não custava nada tentar). Mas nada resolvia. Os médicos diziam sempre: suas cólicas e seu fluxo vão melhorar quando você emagrecer. Eu nunca consegui entender a lógica do raciocínio. O meu peso era responsável pelas cólicas e pelo fluxo? E tudo isso pararia se eu o eliminasse?


Embora não conseguisse comprar essa ideia, eu estava desesperada. Precisava tentar alguma coisa, qualquer coisa. Então lá fui eu para uma espécie de grupo de apoio semanal onde contabilizávamos nossas refeições através de pontos. Não deu muito certo logo de cara, mas assim que peguei o jeito, comecei a perder peso gradativamente. Quando cheguei ao número considerado ideal para milagrosamente curar meus problemas com cólicas e fluxo intenso... Tcharã!!! Nada aconteceu. As dores ainda estavam lá. O fluxo de sangue ainda era intenso e me presenteava frequentemente com vazamentos. Mas não era para ser ação e reação? Emagrecer e melhorar?


A coordenação do meu colégio chegou a chamar minha mãe na escola para dizer que eu exagerava um pouco sobre as minhas dores, já que todas as garotas da minha idade conseguiam lidar com ela, exceto eu, que desmaiava, chorava de dor e “fazia drama”.

Eu então desisti de tentar porque todo médico me dizia a mesma coisa e não parecia haver nada mais que pudesse ser feito. Já estava conformada com o sofrimento quando descobriram um nódulo bem grande próximo à minha bexiga. Era caso de cirurgia, mas não tinha nada a ver com as minhas dores ou meu fluxo. Já tinha dezoito anos, entrei para a mesa de cirurgia e quando me abriram, surpresa: a paciente tem endometriose profunda.

E, como passei seis longos anos sem tratamento nenhum (apenas seguindo os conselhos médicos para emagrecer) minha trompa de falópio direita estava comprometida. O médico fez a raspagem do meu endométrio e alertou minha mãe de que eu precisava urgentemente de um especialista, pois a doença estava muito avançada.


Se algum dos tantos médicos a que fui tivessem visto uma pessoa sofrendo mês após mês, ciclo após ciclo, talvez eu não tivesse perdido a minha trompa; talvez não precisasse ter sofrido tanto; talvez não achassem que eu estava “fazendo drama”. Mas os médicos, esses mesmos que deveriam cuidar das pessoas, só conseguiram ver um corpo gordo que precisava perder peso e foi assim que cada um deles negligenciou a mim e colocou a minha vida em perigo.


O nome disso é gordofobia médica. E todos os dias, pessoas gordas passam por situações como essa. A saúde da pessoa gorda é questão de direitos humanos, de saúde pública. Mas enquanto todos continuarem fechando os olhos e dizendo “é só emagrecer”, nós continuaremos em perigo.


Thati Machado para a coluna Gorda, sim!

Encontre-a no Instagram @machadothati

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