Por Cris Coelho
Fatine Oliveira é uma dessas mulheres que nos fazem rever nossos conceitos mais enraizados. Ela não se conforma com os padrões sobre a existência de pessoas com deficiência e luta com toda a potência da sua voz contra os desvios de percepção nos quais por vezes incorremos.
Militante da causa a favor de pessoas com deficiência, uma das primeiras lições que absorvi de Fatine foi que não devemos jamais nos referir a uma mulher como deficiente, mas sempre como pessoa com deficiência.
Lição aprendida, segui com ela e seus valiosos ensinamentos sobre como tratar uma mulher da forma devida e como ela merece. Aprendi e aprendo todos os dias a rever meus conceitos arcaicos e a estabelecer uma linha minimamente razoável para poder criar um espaço empático na Revista MS, no qual todas as mulheres, com ou sem deficiência, sintam-se bem-vindas e acolhidas.
Senhoras e senhores, com vocês, a dona da coluna Corpos sem Filtro, Fatine Oliveira:
“Tenho 37 anos, sou escorpiana e gosto de ficção científica. Essas informações são importantes para ilustrar minha história de vida. Quando criança, não tive um diagnóstico conclusivo que explicasse minha dificuldade em andar.
Os médicos acreditavam que eu não viveria após os sete anos e, como você pode ver, eles não sabiam absolutamente nada sobre mim. Fui criada sem distinção, quero dizer, recebemos os mesmos cuidados e o mesmo amor dos meus pais. Talvez eu tenha recebido mais atenção, por causa dos médicos, da alimentação e das demais situações que a deficiência provoca na vida de uma pessoa.
Tive muita dificuldade em aceitar essas diferenças sociais. Nunca me senti diferente e, por isso, me incomodava (e ainda incomoda) quando alguém insistia em me negar acesso a qualquer coisa. Por esse comportamento, fui e sou taxada de brava. Tive minha primeira crise depressiva na adolescência, na época não via muito sentido em tecer sonhos se não poderia viver para realizá-los. Foi apenas aos 24 anos que, ao concluir meu diagnóstico, pude “reviver” e então ir atrás do tempo perdido. Consegui meu primeiro emprego como atendente de SAC em um shopping de Belo Horizonte, fiz um ano de faculdade na PUC Minas no curso de Publicidade e Propaganda, mas precisei abandoná-lo por falta de condições de pagar a mensalidade. Um ano depois, ganhei uma bolsa do Prouni e pude finalizar os estudos no Centro Universitário Newton Paiva.
Nesse período, trabalhei em uma instituição chamada Sistema Divina Providência, como assistente de comunicação. De início, a vaga era para pessoas com deficiência, porém o presidente percebeu que minha competência ia além do que o cargo pedia e resolveu me conceder a vaga relacionada à minha formação. Foram dois anos e meio de muito aprendizado, pelos quais sou agradecida até hoje.
Em 2013, sendo mulher com deficiência, comecei a narrar minhas experiências nas redes sociais e aos poucos fui me tornando conhecida pela comunidade. Comecei escrevendo para o blog Cantinho dos Cadeirantes, mas depois criei um canal no YouTube e um blog, em 2015, chamado Disbuga, assumindo aos poucos uma postura ativista. Após minha formatura, consegui trabalhar em uma agência de publicidade em Belo Horizonte, onde fiz amigos queridos e contatos profissionais que me auxiliaram a me tornar freelancer de 2014 até os dias atuais. Em 2016, eu me tornei sócia de uma agência digital chamada As Duas Comunicação, com minha amiga de longa data, também publicitária. Contudo, encerramos essa parceria em 2022 para nos dedicarmos a projetos pessoais. Em 2018, consegui uma vaga de mestrado no curso de Comunicação Social na UFMG e fui integrante do grupo Afetos: Grupo de Pesquisa em Comunicação, Acessibilidade e Vulnerabilidades (UFMG), no qual defendi minha pesquisa: “Textualidades afetivas de mulheres com deficiência no Instagram”.
Nesse mesmo ano, fui convidada para participar da fundação do Coletivo Feminista Helen Keller ao lado de outras mulheres com deficiência que compartilhavam das inquietações e do desejo de construir um movimento capaz de acolher nossas vivências. Em 2021, eu me tornei conselheira do fundo de apoio a mulheres na ciência, MunaCi ISC, e em 2022 passei a fazer parte do movimento Vidas Negras com Deficiência Importam-VNDI .
Como mineira, amo sair com minhas amigas, adoro botecos. Também não dispenso um café com pão de queijo ou outros quitutes. Meu bicho favorito é gato, mas adoro pets. Gosto de ver seriados, filmes e animações de todos os tipos. Sou fã de Star Wars, amo Beyoncé e ouço vários estilos musicais, desde música clássica até o funk carioca. Meu escritor favorito é Guimarães Rosa. Acho que é SÓ isso (risos).”
MS: Você tem uma história de vida incrível, Fatine. Mas conte para nós: quem é a Fatine que não conhecemos?
[Fatine Oliveira] Já falei tanto de mim em textos, que não sei dizer se deixei algo de fora (risos). Sou uma pessoa bem comum, na verdade. Tenho medos, inseguranças em relação a muitas coisas, mas tenho uma velha mania de tentar encontrar o lado positivo de tudo que me acontece. Nem sempre consigo, confesso, porém sigo tentando.
MS: Qual é a paixão que te move todos os dias?
[Fatine Oliveira] Gosto de me sentir útil, de fazer parte de algo e, com isso, ajudar as pessoas. Me incomoda pensar que não tentei melhorar minha vida ou a daqueles que me rodeiam. Pode parecer clichê, mas é algo que realmente me move.
MS: Qual é a sua atividade favorita?
[Fatine Oliveira] Adoro ver filmes; sempre gostei, por sinal. Para muitos, pode ser uma atividade corriqueira, porém me envolvo nas histórias que vejo e busco relacionar os detalhes à minha vida ou a alguma teoria relacionada a minha linha de pesquisa.
MS: Fatine, como você se sente quando pensa em tudo pelo que já passou?
[Fatine Oliveira] Para falar a verdade, eu me sinto bem orgulhosa do que me tornei. É verdade que tive muitos obstáculos pelo caminho, mas a maioria deles existiram porque a sociedade é incapaz de receber pessoas com deficiência. Minhas conquistas são minhas e não estão relacionadas ao meu corpo, mas ao meu desejo de alcançá-las.
MS: Você é envolvida em várias causas sociais importantíssimas. Quem é a sua maior inspiração?
[Fatine Oliveira] Sem dúvida, são meus pais. Da minha mãe, aprendi que toda mulher pode conquistar sua independência financeira, estudar e alcançar seus objetivos pessoais. Do meu pai, aprendi que tudo é político; cada decisão que tomamos interfere na vida de alguém e, por esse motivo, precisamos pensar em nossas escolhas.
MS: Um pouco da realidade de pessoas com deficiência é exposta na sua coluna Corpos sem Filtro. Quando você achou que era hora de falar sobre isso com as pessoas?
[Fatine Oliveira] Comecei a falar sobre o tema antes de me assumir militante, por meio de desabafos e reflexões em minhas redes sociais. Amigos e familiares começaram a me incentivar a fazer um blog para alcançar mais pessoas com e sem deficiência, a pensar em outras formas de viver com a deficiência. Aos poucos, isso foi tomando forma, até se tornar uma pesquisa.
MS: Considera que tivemos evoluções na sociedade na área inclusiva?
[Fatine Oliveira] Com certeza evoluímos em alguns aspectos, mas ainda precisamos avançar em outros. A educação é um bom exemplo. Na minha época, nos anos 1990, não havia muitos alunos com deficiência no ensino regular. Éramos segregados em escolas especiais ou institutos de reabilitação, fora do alcance da sociedade. Hoje, com a LBI, já temos uma lei que tem como finalidade realizar essa inclusão desde a fase infantil até a universitária. Apesar da ausência de investimento para adaptações nas escolas, é possível notar como a nova geração já possui uma outra percepção sobre os colegas com deficiência. Infelizmente, são resultados que levam anos para se consolidarem, porém, ainda assim, não podemos menosprezá-los.
MS: Quais soluções você enxerga para que pessoas com deficiência tenham vidas melhores?
[Fatine Oliveira] Toda mudança estrutural demanda ações políticas, ou seja: sem garantias legais, não é possível avançar nessas pautas sociais. Para que isso aconteça, precisamos de instituições estáveis e de um sistema democrático que permita à sociedade reivindicar suas demandas aos seus representantes. Sem isso, infelizmente não há muito o que fazer.
Apesar da ausência de investimento para adaptações nas escolas, é possível notar como a nova geração já possui uma outra percepção sobre os colegas com deficiência. Infelizmente, são resultados que levam anos para se consolidar, porém ainda assim não podemos menosprezá-los.
MS: O que te mantém motivada para conquistar seus objetivos?
[Fatine Oliveira] Teimosia (risos). Não sei qual nome posso dar a esse comichão que surge quando quero fazer alguma coisa. Insisto, tento e persisto até conseguir. Só paro ao perceber que não é algo saudável para mim.
MS: Qual é a lembrança mais marcante que você tem?
[Fatine Oliveira] Gosto de relembrar os momentos especiais que vivenciei até hoje. Uma dessas lembranças é minha formatura em Publicidade e Propaganda, em 2012. Eu me dediquei muito aos estudos porque sabia o quanto era importante ser uma mulher com deficiência e ter uma profissão, sabe? Em um país com apenas 1% de pessoas com deficiência ocupadas, eu precisaria me destacar de alguma maneira que não fosse apenas por ter algum tipo de impedimento físico. Era uma forma de afirmar para mim que eu era (e ainda sou) capaz de transformar meus sonhos em realidade.
MS: Acha que há união entre os discursos de inclusão de pessoas com deficiência?
[Fatine Oliveira] Em alguns pontos, sim; em outros, ainda há algumas disputas. Todo movimento social tem suas linhas de pensamento, correntes teóricas e opiniões diversas, por isso é de se esperar que o mesmo aconteça entre nós. O que precisamos fazer é avançar no apoio de pessoas SEM deficiência às nossas pautas anticapacitistas. Eu me atrevo a dizer que esse é o ponto em que ainda não temos união, já que boa parcela dos movimentos sociais nos mantêm afastados de suas mobilizações.
MS: Qual a mensagem que gostaria de deixar para os leitores que te acompanham na MS?
[Fatine Oliveira] Gostaria de convidar todes a realizarem uma leitura atenta e cuidadosa e, principalmente, a manterem-se abertes às histórias, às reflexões e aos desabafos que realizo na minha coluna. Ali é um lugar para o aprendizado, mas também para a troca e a construção de novas ideias e projetos de uma sociedade melhor e mais inclusa. Portanto, sejam bem-vindes e sintam-se em casa.