Muito longe dali, escuto os passos do meu pai tentando apagar o fogo que insiste em se fazer presente no meio da sala pequena; aproximo-me e vejo seu rosto flamejar ruborizado, cheio de dor e pena de si próprio. Abraço a Teka com medo e, sem opção, fujo dos meus pensamentos para um lugar gelado e escuro. Sento-me no canto da sala e espero ansiosa minha vida passar por mim.
Agradeço o tempo que me brindou com o esquecimento fortuito daquele dia infeliz, da história que gostaria que não me pertencesse, mas pertence. Passo anos tentando enterrar as imagens das labaredas com seus desastrosos sons, que anunciavam a despedida precoce do homem que me deu mais do que doses certas de amor.
Entendo que é preciso coragem para continuar a caminhada, mas falta-me um pouco mais de mel para adoçar o bolo que preparei para o seu aniversário. Será que ele vai me agradecer por ter lembrado do seu funeral? Enxugo as lágrimas que descem saltitantes pelo meu rosto e entrego um pouco de dor para a Teka, para que ela possa ajudar-me a esquecer, ou, ao menos, tirar um pouco do peso dos meus ombros cansados.
Entendo que é hora de virar a página, mas não consigo fazer o bolo crescer. Não consigo ligar o carro… não consigo. Volto para o meu antigo apartamento e abro o armário da despensa; busco minha caixa de recordações para tocar nas cinzas do meu manifesto, cheio de memórias e absurdos inconfessáveis, cheio de verdades e desgostos. Sinto o calor dessas imagens aquecerem as palmas das minhas extremidades e respiro um pouco do perfume tóxico que inundou minha mente por tanto tempo…
Ali, sem nenhum pudor, está o artefato usado para explorar a minha ingenuidade. Ali, sujo de sangue, está a arma que ele usou para acabar com a alegria de todas as próximas experiências da minha vida. Ali, naquela caixa pequena e pesada, está a verdade que eu tento esconder de mim por toda uma vida…
Fui! (colocar um pouco mais de mel no bolo sem graça…)
* ESTE É UM TEXTO QUE ALERTA SOBRE OS ABUSOS DE FAMILIARES A CRIANÇAS DENTRO DE SUAS PRÓPRIAS CASAS *