Na semana que antecede os preparativos para a grande festa, em uma terça-feira vulgar, de um tempo que se define apenas como expectativa da alegria que se apresenta mais à frente, escuto o som estridente da campainha dos fundos. Penso ser alguma entrega fortuita, dessas que servem para nos fazer lembrar de tudo que não precisamos, mas ainda assim, compramos.
Pois bem, fui atender a porta de serviço, já pronta para estender os braços em busca de tal encomenda ou de alguma carta sobre impostos ou multas de trânsito, quando vejo a expressão de agonia do Seu Zé, o faxineiro de meia idade do prédio antigo em que habito, neste bairro concorrido no meio da cidade mais populosa do país. Ele gritava pedindo ajuda para a empregada da vizinha, dizia que a coitada estava morrendo e que eu teria que ir vê-la.
Gelei por completo e paralisei por alguns segundos. Disse que não era médica e que seria mais útil ao telefone, pedindo ajuda para os órgãos que desconheço, entrando em uma dinâmica que não faz parte do meu mundo, mas que é o procedimento para estes momentos. Interfonei para o porteiro, que me avisou que já havia chamado os bombeiros e que agora era questão de esperar.
Não me contive dentro da segurança sufocante do meu sagrado lar e fui ver a senhora que estava prestes a morrer, fui para tentar consolá-la até o auxílio chegar; fui para segurar suas mãos enquanto as mesmas ainda estivessem quentes e com movimento. Rezei em silêncio para que ela ainda estivesse por aqui e para que não se despedisse desse mundo na minha humilde presença.
A cada passo em direção à porta que fica em frente à minha, meu coração acelerava um pouquinho mais e minha respiração diminuía como um pandeiro que se torna lento em um ritmo fúnebre e gelado. Entrei, finalmente, na casa da vizinha, com sua cozinha branca que parecia enorme, até chegar na sala de estar, onde vi a cena que havia tentado fugir com toda covardia que me acompanhava até esse momento. Ela estava estirada no sofá da sala, totalmente imóvel e com seus dedos já roxeados nas extremidades. Ao me aproximar, avistei um último movimento do seu corpo em busca do ar que parecia não chegar aos seus pulmões. Um barulho de suspiro misturado com uma rouquidão molhada inundou a sala e percorreu as extremidades de seu gelado corpo, como se sua alma dissesse adeus ao seu corpo. Vi a vida desta simpática mulher ir embora em uma fração de segundos, de uma forma doída e triste, em uma cena que jamais esquecerei.
Neste momento, uma vizinha se dizendo médica veio correndo socorrê-la juntamente com o zelador do prédio. Eles colocaram a moça de meia-idade no chão da sala e começaram a empurrar seu tórax para dentro do peito, em uma busca desesperada de fazê-la voltar para a vida que a havia abandonado de forma agonizante.
Eu sabia que os movimentos repetitivos eram desnecessários pois sua alma já havia saído do seu corpo, embora sua presença ainda se notasse no ambiente. Passados vários minutos de agonia, três pessoas ainda tentavam, em vão, ressuscitar o plácido coração da senhora branca de cabelos encaracolados e expressão doída, e foi quando eu senti aquele ar gelado passar por mim na forma de um arrepio constante e seco, com um barulho de ressoar de um tamborim bem suave, que sinalizava a saída definitiva desta senhora para outro um outro lugar, um bem longe dali… senti meus pelos se arrepiarem e seu corpo, de repente, começou a tomar uma outra forma, como se estivesse mais compacto e mais carnal do que nunca.
Percebi que sua essência havia ido embora, não restava mais nada dela ali, a não ser seu corpo pesado e enrijecido. Era o fim de uma história que se desenhava bem ali na minha frente, que findava o ciclo de um alguém que tinha um sorriso largo em todas as vezes em que nos encontrávamos na retirada dos nossos lixos, na corrida rotina que nos engole e nos torna “frios”, tão frios quanto o corpo que agora acoberta os quilos inúteis da ex-doméstica da minha vizinha de porta de serviço…
Entendi naquele momento que aquele convite feito pelo Seu Zé, para ajudar a empregada que se sufocava com a gota de ar que havia se desprendido de suas pernas após a cirurgia de varizes, que acabou por levar-lhe a vida, era, na verdade, um convite para que eu presenciasse a maravilha que é a vida, que nos é entregue de presente e que nos é tirada a qualquer momento, sem explicação ou contestação.
Entendi que nada fiz por aquela mulher, apenas admirei com tristeza a sua passagem. Mas ela fez muito por mim, ao me convidar para assistir o “espetáculo” da sua morte; aquele que eu jamais gostaria de ter presenciado, mas que muito me ajudou a olhar para tudo o que me cerca e a valorizar cada tragada de ar nos meus pulmões.
Sigo esta caminhada com a presença da Kátia em um espaço valioso na minha memória, aquele me fará lembrar sempre da importância da VIDA que compartilho com os que tanto amo.
By Cris Coelho