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O Canto das Sereias

Era um friozinho que lhe percorria os ossos...

Conhecia aquela sensação, a sensação de ser excluída. Era um congelar dos ossos da nuca. Um peso que se abatia nas costas, na altura dos ombros, assim como na parte posterior dos braços, e aquela vontade de chorar engolindo a saliva seca. Não tinha palavras para descrevê-la e talvez a palavra congelamento chegasse próximo ao que sentia na carne, no avesso da sua pele. 

Eles queriam puni-la. A respiração ficava curta e superficial. Não se sentia sendo aceita do jeito que era, tinha que ser diferente.


“Quer mais um vinhozinho? Ah não! Já iremos almoçar”. “Tem ouvido muitos aviõezinhos da sua varanda?”. “O seu signo, olha lá, não é muito bom não, viu?”.

Ao lembrar das frases proferidas pelo seu cunhado e das risadinhas ao redor dela durante o almoço no dia de Natal, o peso na nuca parecia aumentar. Viu-se enredada na trama mórbida da intriga. Por que permaneceu ali? Por que se submetia a esse tipo de tratamento? 


Ouviu a sirene da ambulância que passava pela rua... a língua se anestesiava, era difícil pronunciar as palavras... quase já não respirava mais... 

Imaginava-se sendo arremessada nas rochas pelo canto irresistível das sereias, o canto de louvor fatal que vem do alto dos rochedos e que conduz milhares de homens ao mar com um só objetivo: amaldiçoá-los.


Sim, sentia-se amaldiçoada naquele convívio. Como se batesse em portas trancadas, fechadas, indisponíveis para qualquer tipo de troca mais afetuosa.


Há alguns meses tinha tido um aborto e os pensamentos lhe invadiam o espírito, enquanto estava ali, mergulhada até as orelhas na banheira cheia até às bordas. Ainda se recuperava do processo de luto. Tinha sido uma criança muito esperada. Até se mudaram de casa planejando ter mais espaço para acomodar a nova integrante da família, mas foram meses agonizando porque, segundo os médicos, a bebê não era compatível com o sangue materno.


Agora, admirava o desenho abstrato, que se formava daquele mesmo sangue infértil, na água morna do banho.

FIM

Isabella Dias para a coluna Contos Literários

Encontre-a no Instagram: @cuidadoterapeutico

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