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O poder de fala do subalterno



Há cerca de dois anos, estava a frequentar as aulas de mestrado da USP, que me transporta, sem qualquer aviso, para um mundo paralelo e de utopia real, se é que me entende. Onde o presidente era uma mulher, e como ministro da cultural, da educação, este senhor também ocupava o cargo de Primeiro Ministro. O cara era um “Lord”, árabe e lindo. Lindo, inteligente… Gostoso de ouvir, infelizmente, as nossas aulas começaram ao mesmo tempo em que esta loucura mundial chamada de COVID-19.


Voltemos ao mundo de utopia real. Durante as aulas virtuais, eis que surge em minha telinha alienada este Lord árabe, com discurso próprio e com propriedade. O cara mandava muito bem. Começou a dissertar sobre o poder de fala dos subalternos e em meio a este turbilhão de emoções, e fui despertada para a indicação de uma leitura: “Pode o Subalterno Falar?”. Um livro bom, com uma pegada teórica boa, porém te ajuda na prática a lidar com esta sensação de mordaça que nos permeia e que nos deixa a sensação de “Cala a boca”. E aqui começa a minha sugestão de leitura.

“Por que não é feita com regularidade e seriedade uma imprensa LGBTQIA+?”

Lá pela metade da leitura, aparece uma frase assim: “Se, no contexto da produção colonial, o sujeito subalterno não tem história e não pode falar, o sujeito subalterno feminino está mais profundamente na obscuridade”.  E não é mesmo? É um livro, “provocador”,” Pode o subalterno Falar?”.  A teórica, feminista e professora de literatura e uma das mais influentes, e poucas, intelectuais existentes pós-coloniais, fala do sujeito “subalterno” e pincipalmente o subalterno, na figura feminina, especificamente na Índia. Aquele que não tem voz política, ou que, tem voz e esta não é ouvida. Mostra a importância dos intelectuais abrirem espaço de “fala” a estes sujeitos. Que sou eu, você e quem mais sentir ou sentiu esta sensação de “Cala a Boca”. A autora faz uma critica a Gilles Deleuze e Michel Foucault, em texto que os dois senhores filósofos conversam: “Os Intelectuais e o Poder”. Vale a pena também dar uma passada de olhos.


A autora Indiana, Gayatri Chakravorty Spivak, crítica e aponta a condição “etnocêntrica” a intelectualidade ocidental quando se trata de sua relação com a projeção da alteridade que acontece sobre a falta de fala de espaço para se falar. Não a falta de voz propriamente dita, essa ainda tenho: “… que os intelectuais devem tentar revelar e conhecer o discurso do Outro da sociedade.” Diz a autora e eu gritava em silêncio: “É isso ai minha senhora”.

O “outro”, segundo a escritora, é inacessível para o intelectual ocidental, que, projeta o seu próprio etnocentrismo ao projetar a alteridade, criando situação política da substituição. Entre tantas coisa ela diz que devemos, “sim”, (este sim é meu), confrontar a seguinte questão: no outro lado da divisão internacional do trabalho do capital socializado, dentro e fora do circuito da violência epistêmica da lei e da educação imperialista, complementando um texto anterior, “Pode o subalterno falar?“. A revolta da escritora, (e a minha), é que os filósofos criticados, Deleuze e Foucault, transformam os subalternos em objetos. A capacidade de fala do subalterno é questionada pelo intelectual, que ignora a teoria ideológica freática a questão. Considerando que o livro enfoca o subalterno não como sujeito marginalizado, mas como proletário inserido no capitalismo global – “as camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão dos mercados, da representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social dominante”.  Como pleitear poder? Sua fala? Desejo ou qualquer interesse. Esses subalternos acabam sendo subestimados pelo intelectualismo que julga poder falar em nome do subalterno: “… o texto verbal é um sujeito”.


O que Spivak defende é a ambivalência na palavra “representação”, Lindo isso: REPRESENTAÇÃO. E sinceramente? É o que nos falta, representação. Compartilhamento de conhecimento, insistir para que o outro aprenda SIM senhor!  O sujeito soberano do conhecimento esconde, disfarça a Europa como sujeito, cuja história é contada pela lei, pela economia política e pela ideologia do ocidente e cria um sujeito subalterno: “homogêneo e monolítico”. Sistematicamente comandados por outro, e aqui incluo a nós sul-americanos, que crê que os “re-presenta”, a autora diz que o intelectual acaba, por “falar por” eles, mesclando os dois diversos sentidos da representação.

“É o que nos falta, representação. Compartilhamento de conhecimento, insistir para que o outro aprenda SIM senhor!”

A leitura não é chata, é dinâmica e vamos ao correr dos olhos nas linhas escrita por esta senhora, reconhecendo, em cada parágrafo como este sujeito subalterno e sem o poder de fala. A autora descamba em direção dos filósofos: “… Se este é, de fato, o argumento de Deleuze, sua articulação é problemática. Dois sentidos do termo “representação” são agrupados: a representação como “falar por” como ocorre na politica, e a representação como “re-presentação” , como aparece na arte ou na filosofia. Como a teoria é também apenas uma “ação”, o teórico não representa (fala por) o grupo oprimido”.  Tome senhores! Ou como diria uma sábia amiga: “Chupa sociedade”.


Gayatri Chakravorty Spivak,  autora desta delicia de leitura, é indiana, sabemos das limitações e dificuldades deste país, de seus costumes, de suas religiões, castas, porém, ela fala sobre a historiografia colonial de sua Índia.  “Não se trata de uma descrição de como as coisas eram ou de privilegiar a narrativa da história como imperialismo como a melhor versão. Trata-se do contrário, de oferecer um relato de como uma explicação e uma narrativa da realidade foram estabelecidas como normativas…As bases da codificação britânica das leis hindu”. “A reivindicação desta senhora, autora é que o intelectual “pós-colonial” crie espaços que sejam possíveis, e pelos quais o subalterno possa falar e o principal – ouvindo – enquanto fala.”  Não é genial?


O paradoxo da livre escolha entra em jogo. “A questão mais abrangente da constituição do sujeito sexuado, permanece encoberto pela ênfase na violência visível da sati. A tarefa de recuperar um sujeito, (sexualmente) subalterno se perde em uma textualidade institucional de origem arcaica”. Termino usando o texto da autora que conta a história de uma ativista indiana, totalmente envolvida na luta armada pela independência da Índia, essa jovem cria um lugar de fala no próprio corpo com o seu suicídio. Não consegue realizar um assassinato político a ela incumbido: “consciente da necessidade prática de confiança”, enforcou-se.


Sabendo que o suicídio seria creditado a uma paixão ilegítima a gravidez indesejada esperou o início de sua menstruação e realizou em si mesma um gesto de deslocamento, criando “uma inversão da interdição contra o direito de uma viúva menstruada de se imolar”.  Infelizmente o seu gesto passou despercebido em sua dimensão política, creditado de qualquer maneira a um possível amor ilícito; o gesto não reconhecido, não é ouvido ou lembrado. “ O subalterno como sujeito feminino não pode ser ouvido ou lido.


“São mudos àqueles que agem e lutam em oposição àqueles que agem e falam? Esses problemas imensos estão encravados nas diferenças entre as “mesmas” palavras: consciousness (condição de estar ciente de algo) e conscience (relativo a questões éticas e morais) em inglês, representação e ‘re-presentação’ (em português, ambas são traduzidas com ‘consciência’)”.


Tudo dito, inclusive a boa indicação de leitura, infelizmente puxo vocês de volta do Mundo de utopia Real para terra firme e continuo o questionamento: O fato das mulheres,  transexuais e travestis não terem o poder de fala na sociedade,  impedidas de interpretar os seus próprios papéis ou sequer de fazer seus discursos autorais e por que não é feita com regularidade e seriedade uma imprensa LGBTQIA+?


Essa é a pergunta feita por quem nunca ou quase nunca leu um veículo voltado para o público LGBTQIA+, porém acham que esses veículos deveriam existir. Uma publicação que represente uma classe que não possui voz na sociedade, mostrando como é importante para a construção de uma identidade nacional pluralista de forma corriqueira, normal sem ser considerada uma ameaça, ou de estar à margem social. Onde a letra “T” é sempre esquecida ou não citada ou não há uma representatividade. E quando as poucas, ou pouquíssimas que conseguem romper essa bolha, acabam por se “adequarem” a normatização impostas a elas.


Salve Maria Scarlet!


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Indicação:

“Pode o Subalterno Falar?”

Autor:  Gayatri Chakravorty Spivak

Editora:  UFMG

Tradução: Sandra R G Almeida / Marcos Pereira Feitosa / André Pereira Feitosa

Ano: 2010

Número de páginas: 133

Sobre o Primeiro Ministro do Mundo de Utopia Real: Paulo Daniel Elias Farah é professor na FFLCH-USP desde 2000, líder dos grupos de pesquisa “Temáticas, narrativas e representações árabes, africanas, asiáticas e sul-americanas e de comunidades diaspóricas” e “Núcleo de Apoio à Pesquisa Brasil África”, cadastrados no diretório nacional de grupos de pesquisa do CNPq em 2009 e 2012. É coordenador do Programa para Refugiados, em parceria com a USP, reconhecido como projeto que ajuda a promover os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável/ODS da ONU, e do projeto de tradução e uso de fontes não-indo-europeias para conhecer África e regiões árabes. Vice-Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades/FFLCH/USP. Atua principalmente nos temas: e/i-migração, refúgio, interculturalidade, xenofobia, estudos de coloniais, Orientalismo, literatura, língua, história e cultura árabe e africana (de maioria islâmica), relações Brasil-África-países árabes, Islã em África, Oriente Médio e Brasil, narrativas de viagem, fontes e escritas não-indo-europeias e manuscritos. Professor, escritor, tradutor (de obras do séc. X até a atualidade) e editor, é autor, entre outras obras, de Deleite do estrangeiro em tudo o que é espantoso e maravilhoso: estudo de um relato de viagem bagdaliPresença Árabe na América do SulO Islã; e Diálogos e Resistências: a África no Brasil e o Brasil na África (editor e co-autor). Pesquisa línguas como árabe, kiswahili, hauçá, persa, latim e grego, além de português, francês, inglês, espanhol, italiano e alemão.


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