Entenda sobre o mais novo crime de perseguição
Começarei essa matéria dividindo com vocês um caso que chegou para minha apreciação em um dos meus movimentados plantões na Delegacia onde estou lotada. Uma mulher aparentemente fragilizada e abalada psicologicamente começou a desabafar após ser convidada a entrar em minha sala, cujo acesso exige a travessia pelo saguão da Delegacia onde encontramos as mais variadas pessoas, dentre as quais, Policiais Civis, Policiais Militares, partes, advogados, presos e é claro o cachorro que mora na unidade e que de alguma forma consegue tornar nossos plantões mais agradáveis com sua companhia.
Incrível como esse esperto animal sabe diferenciar os presos das demais pessoas, pois a simples movimentação daqueles já é suficiente para chamar a atenção do “Borracheiro”, como é carinhosamente chamado por nós, que com seu latido acaba auxiliando e nos alertando para algumas situações inusitadas.
Logo no início da entrevista a moça começou a falar que não aguentava mais tampar os ouvidos e ainda continuar ouvindo vozes e fechar os olhos e continuar enxergando com nitidez a imagem da pessoa, tamanho medo que àquela vítima sentia de seu companheiro, que de príncipe se tornou um perseguidor contumaz de seus passos, o que abalou consideravelmente a sua paz interior e até seu desejo de viver.
“Nas vezes em que tentou sair da cama e deixar o ambiente, ele vinha atrás dela e a segurava com força, apertando-a e por isso aprendeu a esconder todo o seu pânico embaixo daquele cobertor usado”
Dizia a mulher que sua vontade era se deitar na cama e se cobrir totalmente em posição fetal, a única que a tranquilizava, um pouco mais, em suas terríveis noites de sono. A escuridão e o silêncio da noite eram seus principais aliados e, de certa forma, a protegiam até o clarear do dia, quando então ouvia novamente o som da chave virando, da porta se abrindo e dos passos do seu companheiro aproximando-se compulsivamente daquele quarto, que até então era o seu refúgio mais seguro.
Sua respiração começava a ficar mais ofegante, pois já sabia o que a esperava a partir de então. Insultos gratuitos, cobranças indevidas, acusações levianas, tudo saía da boca daquele homem como farpas afiadas que machucam a pele ao tocá-la. Ela já não aguentava mais ser chamada de “baleia”, “porca”, “relaxada”, “larga”, “que só saía para se exibir para macho”, “que se chamasse a Polícia ninguém acreditaria nela”, já que mal sabia se expressar por não ter concluído o ensino básico e ainda, “que seu lugar era na cozinha, de quatro, limpando o chão onde ele iria pisar”. E o pior é sabermos que isso no fundo é uma pequena amostra de tudo o que essa vítima realmente escutou ao longo de meses seguidamente.
E assim os dias se passavam e o ritual de seu companheiro se repetia, o qual após chegar à casa bêbado, deitava-se ao seu lado e começava a disparar ofensas a sua pessoa e, por incrível que pudesse parecer, era melhor ficar ali, parada, até ele se cansar e não mais ter força para pronunciar sequer uma palavra do que tentar escapar daquele lugar.
Nas vezes em que tentou sair da cama e deixar o ambiente, ele vinha atrás dela e a segurava com força, apertando-a e por isso aprendeu a esconder todo o seu pânico embaixo daquele cobertor usado, por mais quente que estivesse a noite, como sua principal companhia e esperança de que logo voltaria a respirar normalmente.
Assim, receosa de ser novamente agredida acabava desistindo de se levantar naquele instante e sair correndo dali.
Uma hora o efeito da bebida acabava e seu companheiro ingressava num estágio profundo de sono, quase letárgico, o que significava para a vítima mais algumas horas de alívio, sem ser importunada, ao menos até a noite seguinte.
Após passar alguns meses sofrendo com aquele mesmo comportamento aterrorizante de seu companheiro que restringia a sua liberdade, ofendia a sua intimidade e a fazia sofrer profundamente, resolveu tomar coragem e buscar ajuda. De fato, aquela mulher estava mesmo sendo perseguida, não tendo sequer condições de ter uma noite de sono completamente tranquila. Há meses não sabia o que era isso!
Depois aquele breve relato, eu não pensei duas vezes e abri, imediatamente, o Código Penal para ler o artigo 147-A que trata do crime de perseguição que diz assim: “Perseguir alguém, reiteradamente e por qualquer meio, ameaçando-lhe a integridade física ou psicológica, restringindo-lhe a capacidade de locomoção ou, de qualquer forma, invadindo ou perturbando sua esfera de liberdade ou privacidade”. Pena – reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
Naquele instante ela se emocionou ao perceber que suas noites de pesadelo estavam prestes a terminar e que a paz, certamente, voltaria a reinar em seu lar.
Então foi registrada a ocorrência e a vítima requereu as medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha, sendo posteriormente deferidas pelo Juízo o que provocou a saída do autor do lar, além da proibição de contato e de aproximação da vítima.
Expliquei que crianças, adolescentes, idosos assim como as mulheres podem ser perseguidas, mas nesse último caso, havendo razões de condição do sexo feminino a pena prevista para esse crime ainda seria aumentada de metade, devido a maior gravidade.
A vítima saiu satisfeita com o atendimento, acolhimento e orientação recebida, sendo aconselhada também a procurar um auxílio psicológico para melhoria do seu bem-estar, autoestima, vitalidade e resgate do seu empoderamento como pessoa e, sobretudo, como mulher.
Percebam que o temor de eventual represália por parte do marido não superou seu propósito em buscar ajuda, servindo seu caso de exemplo para outras mulheres que sofrem perseguição não apenas no interior de suas casas, mas em seu local de trabalho, de lazer ou mesmo de oração.
O crime conhecido como “STALKING” é uma novidade trazida pela Lei 14.132/21 e tem como objetivo proteger a liberdade individual. Antes essas condutas que abalam a integridade, a livre determinação e o exercício da liberdade eram enquadradas no artigo 65 da Lei de Contravenções Penais que tratava da perturbação da tranquilidade, atualmente revogado, já que apresentava uma pena insuficiente de apenas 15 dias a 2 meses de prisão simples.
Percebam que o verbo perseguir previsto no tipo penal não alcança apenas as condutas que envolvem movimento, já que o autor mesmo parado pode importunar, transtornar, provocar incômodo e tormento, inclusive, com emprego de violência ou ameaça.
Importante, sob o ponto de vista criminal, é que essa perseguição seja contínua e obsessiva, podendo se materializar através de palavras, gestos ou atitudes abusivas que provocam temor, agonia e ansiedade na vítima.
Estamos aqui diante de uma violência psicológica que subjuga a vítima, inferiorizando-a através do medo e controle das suas ações, com reflexo na sua saúde. A vítima privada de desempenhar suas atividades cotidianas ou como no caso acima explanado de satisfazer uma necessidade fisiológica como dormir, por exemplo, está sofrendo o crime de perseguição.
Atualmente é comum que o “Stalking” ocorra através da internet, o que se denomina “Cyberstalking”, caso em que não é necessária a presença física do agente e que poderá consistir em ligações, envios de e-mails e mensagens, utilizando-se das redes sociais com o intuito de hostilizar, atemorizar ou tolher a liberdade da vítima. O crime de perseguição sempre existiu, porém é inegável que sua prática foi potencializada no plano virtual pelo aumento de utilização da internet. Normalmente o perseguidor é a pessoa inconformada com o término do relacionamento, mas a vítima também pode ser perseguida por desconhecidos, sendo muito comum a perseguição de fãs obcecados por uma personalidade.
Ressalto que a perseguição é um crime habitual, ou seja, exige a reiteração de atos para sua configuração. Em resumo, o autor para responder pelo crime tem que praticar várias vezes a mesma conduta, o que nada impede que um ato isolado possa configurar um outro crime, como de injúria ou ameaça, por exemplo.
Da mesma forma, o Cyberstalking pressupõe uma conduta exagerada como ligações constantes, inúmeras mensagens ou diversos comentários nas redes sociais.
“A mulher deve procurar se reencontrar e buscar alcançar seus sonhos e desejos mais íntimos, saindo da posição de inércia e assumindo uma postura mais proativa.”
Lembre-se de que é importante bloquear o contato do “stalker” em redes sociais e denunciar no próprio servidor, sem prejuízo do necessário registro da ocorrência em sede policial para que possa ser iniciada a investigação.
Assim, a perseguição deve ser obsessiva, contumaz e capaz de desequilibrar a rotina da vítima, porém a investigação desse crime não pode ser iniciada de ofício, sendo imprescindível que ela manifeste vontade no sentido de ver o transgressor da norma punido ao final do processo.
Superada a dificuldade inicial eventualmente existente, cabe a mulher vítima permitir-se transmutar da categoria de perseguida para a de fiel perseguidora de seus ideais, muitas vezes reprimidos por condutas opressoras de parceiros obstinados.
A mulher deve procurar se reencontrar e buscar alcançar seus sonhos e desejos mais íntimos, saindo da posição de inércia e assumindo uma postura mais proativa. Tal atitude reflete positivamente e funciona como incentivo para outras mulheres, ainda aprisionadas naquele ciclo da violência, cuja saída muitas vezes elas não conseguem enxergar e por isso optam por sofrer em silêncio.
A criminalização do ‘Stalking” veio em boa hora em razão dos altos índices de violência contra a mulher no Brasil, onde 1 a cada 6 mulheres já foi vítima de comportamentos de perseguição e de atos que infringem sua tranquilidade e sua honra. O maior desafio é impedir que a perseguição se transforme em uma tragédia e fomente a prática de crimes mais graves como o feminicídio, por exemplo.
A tipificação desse crime está em consonância com os direitos e liberdades constitucionalmente assegurados, tais como a intimidade, a privacidade e a vida privada e tem como objetivo precípuo a tutela da dignidade da pessoa humana. Então vamos denunciar, perseguir nossa felicidade e permitir que a Justiça seja feita!
Matéria de Maria Madalena para a coluna Direito das Mulheres
Maria Madalena, é delegada de Polícia Civil há mais de 13 anos. Coordena ao todo 7 delegacias no Estado do Rio de Janeiro, incluindo a Delegacia do Complexo do Jacarezinho. Ela convive diariamente com a violência extrema contra a vida e a dignidade da mulher, absorvendo grande conhecimento de causa para dividir na coluna os fatos e as possíveis soluções deste tipo de conflito que, infelizmente, está mais presente do que nunca na vida das brasileiras.
Formada em Direito pela UniverCidade, e pós-graduada em segurança pública e cidadania, Maria Madalena se divide entre os cuidados com sua família e o trabalho. Ela é casada e mãe de dois filhos: Lucca Vicenzo e Luigi Matteo.
Maria Madalena não possui perfil em redes sociais para preservar a sua segurança e da sua família.